Uma Insolência Baldia - João Pedro Amorim
22 e 23 Abr 2022
Por vezes, a constante propagação do sistema global de produção distrai-nos da pequena erva daninha que cresce nas fendas do pavimento, até nas cidades mais higienizadas. A dominação do natural não acontece senão a partir de reiteradas operações de limpeza e ordenamento contra o crescimento caótico do mundo, que começa desde logo pela forma como este se organiza para nós em categorias como a de natural e artificial.
Estas sessões de projeções instalativas duracionais partem dos materiais de trabalho do projeto A Insolência do Natural (filme em desenvolvimento 2020-2023?) captados em duas minas desativadas em fases de abandono distintas. A proposta é de procurar nestes espaços baldios alento e sinais de uma insolência que nos possa sugerir formas de resistência contra a inevitável hegemonia da produção.
As memórias libertárias de uma planta propõe uma plataforma de comunicação inter-reinos constituída por uma instalação com dois canais vídeo e elementos dispostos no espaço, tanto orgânicos como simulacros sintéticos. O espaço recebe pequenas tentativas de tradução da secreta linguagem das plantas, acompanhada por um conjunto de declarações políticas feitas por plantas envasadas. Na projeção principal seguimos a história da Estufa Fria de Lisboa nos seus dois momentos: um primeiro de abandono, em que o espaço é usado como abrigo de plantas tropicais que, esquecidas, acabam por criar raízes; e um segundo (que decorreu em várias fases ao longo do séc. XX) em que o baldio é recuperado e transformado em jardim urbano, estufa coberta. Neste conjunto, pretende-se dar voz às plantas, seres que poucas vezes são protagonistas nas nossas histórias e contos, sem nos esquecermos da advertência de Cocteau que, enquanto desenha uma flor, nos diz que um artista desenha sempre o seu autorretrato.
Na segunda sala, temos uma cortina-portal que dá acesso a materiais de pesquisa: Diário de campo: viagem ao fim do mundo (extrativista) junta imagens filmadas na Mina de São Domingos com desenhos feitos a partir de documentos do Centro de Estudos da Mina de São Domingos. Este território do concelho de Mértola torna-se cenário apocalíptico e testemunha plástica da violência histórica que aqueles ecossistemas e mineiros viveram, de formas diferentes, mas em conjunto. Um texto evoca as lutas operárias que ali ocorreram, vendo no abandono do espaço tóxico um novo cenário de luta em que, após a partida das populações, as plantas e ervas daninhas se tornam protagonistas. Mais do que o olhar para o que sobeja depois da extração, Diário de campo pretende revelar a possibilidade de uma re-existência para além da catástrofe.
Os dois momentos tentam olhar para os terrenos baldios como espaços onde as vontades de outras espécies escapam aos desígnios humanos e civilizacionais, pelo menos até à eventual reassimilação, numa recusa da produtividade, integral à sua condição baldia. É a condição inútil e vã, por um lado, e a ideia de um terreno inculto que nos inspira a semear as sementes, também elas inúteis, mas funcionais, de uma proposta artística.
João Pedro Amorim