Água Viva - Hernâni Reis Baptista
7 Mai - 28 Mai 2022
Água-viva
each day demands we create our whole world over,
disguising the constant horror in a coat
of many-colored fictions; we mask our past
in the green of eden, pretend future's shining fruit
can sprout from the navel of this present waste.
Skin doesn’t have roots, it peels away easy as paper.
Debaixo do soalho destas salas foram encontradas agulhas. Se seguíssemos estas pistas, como detectives, diríamos que, em tempos, este espaço acolheu ofícios ligados à costura, aos tecidos. O tecido é um material que o Hernâni tem vindo a usar em muitas das suas obras, articulando os temas da camuflagem, história e natureza, vida e morte. Nesta exposição, o tecido assume um papel preponderante. Pele, receptáculo sensitivo tão importante no encontro com o outro. Pele, pregas, plissados. Escamas, lâminas que cobrem o corpo. Membrana de serpente, deixada para trás.
Também nós mudamos de pele. A moda vai tornando as nossas “peles” prematuramente caducas, obsoletas. O novo rapidamente fica velho e o velho regressa como última novidade. Renovação artificial cíclica, repetida infinitamente, a moda anda de mãos dadas com a morte. A moda é o triunfo do inorgânico. Contra o vivo, defende os direitos do cadáver. A moda vai além do fetichismo, subjacente ao sex-appeal do inorgânico: “Cada estação traz, com as suas novas criações, uma série de sinais secretos das coisas futuras. Quem os soubesse ler, conheceria antecipadamente, não apenas as novas correntes da arte, mas também os novos códigos legais, guerras e revoluções”. A moda partilha com a arte essa capacidade de antecipação da realidade. Ambas adivinham o porvir.
Os alfinetes que ligam o pano cru trazem as experiências provisórias da haute couture às salas de exposição. Do pano, emergem as imagens. Através delas, o Hernâni joga com a ambiguidade, esbate fronteiras, funde territórios: corpo, psique, humano, animal, vegetal, orgânico e inorgânico. Um cardo e uma begonia ferox, folhas com espinhos que não picam, aparência de algo que fere, simulacro. Camuflagem radical como táctica de sobrevivência. Um mármore conserva manchas de uma carapaça de caranguejo. Outro uma cabeça de animal, entretanto perdida. Outro, ainda, um tronco preso nas rochas da praia. As imagens surgem vivas do material pétreo, frio. No silêncio, pedem a palavra e quase murmuram. São memória de alguma coisa que se esvai, natureza que se esgota, espoliada. Mostram, também, o nascimento como o outro lado da morte, mostram que a vida é, em si mesma, resiliente, que a natureza pode regenerar-se, iniciar um novo ciclo, como uma água-viva imortal.
Olhos que nos parecem falar e olhos que perderam a capacidade de olhar. Olhar vazio que produz um choque. Manchas de pigmentos espargidas sobre tecido, maquilhagem, beleza conquistada a uma experiência de dor. Beleza que brota do artificial, do petrificado, das ruínas de um mundo que se afunda.
Nada se oculta do processo de produção: moldes, alfinetes, fios que se vão soltando, pano que se vai alinhavando. Dois mantos, fitas entrelaçadas. Tela, teia que atrai. Urdidura. Tapete como o de Aracne, que não é ornamento, mas narrativa. Histórias tecidas como uma segunda pele. Histórias construídas com o próprio corpo.
Nesta constelação de plantas e animais, com begónias, borboletas, cardos, cobras, cabras, cães, tartarugas, focas, alienígenas, mandíbulas, crânios ou caveiras, há também uma camisa. Lembra-nos uma pequena história, contada por Walter Benjamin, que tem por título “O Desejo”: “Numa aldeia yasiidixe, certa tarde, ao fim do sabbat, os judeus reuniam-se numa pobre assembleia. Eram todos moradores da aldeia excepto uma pessoa que ninguém conhecia, um indivíduo miserável e andrajoso, aninhado ao fundo, na penumbra, junto à lareira. As conversas esmoreciam. A certa altura, falou-se do que cada um pediria se lhe fosse concedido um único desejo. Este queria dinheiro, aquele um genro, o terceiro uma bancada de carpinteiro nova e assim por diante. Todos tinham falado e o mendigo continuava no canto da lareira. De má vontade, lentamente, deu também a sua resposta: - Gostava de ser um rei poderoso, senhor de vastas terras, e que uma noite, enquanto estivesse a dormir no meu palácio, os inimigos cruzassem a fronteira e antes do alvorecer abrissem caminho até ao meu castelo sem encontrar resistência; que me arrancassem ao sono sem dar-me tempo para me vestir e eu tivesse que desatar a fugir em camisa; que me perseguissem por montes e vales, por bosques e colinas, sem descanso, dia e noite, até que eu me visse aqui sentado neste banco, junto de vós. Seria o meu desejo. Os outros olharam uns para os outros, sem entender. - E que ganhavas tu com isso? - perguntou um deles. - Uma camisa - foi a resposta”.
Susana Camanho