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para continuar a não saber - Daniela Carneiro Lino

25 Mar - 15 Abr 2023


quando ouço

ouço-te

quem ouve

quando olho

vejo-te

quem vê


enquanto permanece a noção de diferença

estou separada do que ouço

estou separada do que vejo


só poderemos ver o que concordarmos avistar


Escrevi:

“O meu trabalho é sobre respiração. É sobre meditação, contemplação. É um lugar de desbloqueio, onde me amparo e onde vou buscar silêncio para digerir a minha relação com o mundo. Como se fosse um termo de comparação onde vejo a imagem que aparece sem que eu tenha escolhido que ela aparecesse. Aí eu posso ver que está tudo bem com qualquer imagem que apareça em mim também. É sobre deixar cair o que me impede de olhar o mundo, e ver, e acolher.

Formalmente, existe uma matriz que imprime algo que vem do seu próprio corpo - e da sua própria corrosão e da sua própria morte. Tudo isto é cíclico, um movimento constante de consumir a chapa, ir ao fundo dela e o seu interior vir à superfície para ser observado - até ela mesma desaparecer e o seu vestígio serem as múltiplas imagens que os panos agarraram dela. Todas elas diferentes. Todos os panos têm rasto da chapa mas a chapa não está em nenhum deles. Dissolver este eu que quer ser mais, ou outra coisa além do que é - por não reconhecer o que já É.

A composição sonora parte desta mesma intenção de criar um espaço onde é possível abrandar o compasso da mente e criar espaços vazios de receber, observar e aceitar. Loops de drones acústicos que se repetem e recombinam em diferentes escalas de harmónicos. Vem tudo do mesmo lugar.”


a Mafalda Araújo devolveu-me,

“Aqui a luz viaja em vácuo e temos esse lugar como meio. Como num conto de Maria Velho da Costa, um lugar como uma bolha de sumo dentro do gomo de tangerina — é lá que me guardei, disse a criança, e comi-o. Passou o eu para o dentro do dentro. Venho em visita às montagens, e recebo entre os dedos três gomos. Vocês leram, ela fala em consumir a chapa e fico a pensar quantas formas diferentes de viver, sentir, comer uma matéria é possível. Como se, se decidíssemos, pudéssemos ser companheiras de tantas sensibilidades e formas diferentes. E acho que talvez seja isso aqui.

Guia fazedora de inter-mundos, Daniela faz a mediação entre os materiais e as espécies. Participa, cuida, alimenta paisagens, pontos de luz que se expandem, horizontes que se diluem e reaparecem viscerais, em intervalos absolutos. Fala de respiração, e eu escuto respiração oceano. Fala em corrosão, fundo e vejo fogo; fala em desbloqueio, compasso e vejo ar; escreve dissolver, escreve eu e vejo água. Estamos então perante um quinto elemento, a materialização do invisível do tempo com acendalhas.

Leio que o avanço da ciência moderna triunfa as mitologias, que as teorias de Maxwell ‘não exigem o éter para a transmissão dessas forças’. Importa-nos menos o rigor que a atração elástica de todas estas forças transmitidas juntas, e que a Daniela nos oferece como néctar. Para saber do tempo, não abramos o calendário.

O espanto surge, e quem é este dentro que aparece incinerado, terno e furioso, estando fora, sendo outro, tempo na pele carimbado? E não era a Gal que cantava que beleza são coisas acesas por dentro? A Daniela diz que a ferrugem são restos de singularidade no tempo. A ferrugem é maior do que o ferro e ela precisa, urgente, de se libertar. Que dádiva a contemplação de um ‘dissolver deste eu que quer ser mais, mas que já é’. Vocês já sabem: venham os drones e os seus acordares, mas aqui entre nós, aqui entre nós o pacto é este: a fresta está aberta para convidar o/e continuar a/ não saber.”

Daniela Carneiro Lino e Mafalda Araújo